Política Sionista e Judaísmo Fragmentado no Oriente Médio - Prof. André Bacci

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Desde o final do século XIX, o sionismo tem sido uma ideologia em voga entre os judeus europeus, e empenhou o estabelecimento do Estado de Israel em 1948. Hoje, ele toma uma forma diferente da de outrora e interfere diretamente na qualidade das relações entre israelenses e palestinos no Oriente Médio. Por meio da evocação de uma suposta identidade judaica una promove-se a segregação dos árabes palestinos do Oriente Médio que, por sua vez, são mal representados na faixa de Gaza por um poder que elicia o terrorismo tanto na Palestina como em Israel.
Mas as identidades mais definíveis cultural e historicamente, sabemos, não podem ser cooptadas dentro de apenas uma Identidade pura. Por isso, o reducionismo autosubmetido do povo judeu é também pesaroso ao povo palestino, porque dele procede seu infortúnio.
         Desde 1948, o establishment sionista tem empenhado uma política de identificação com os emblemas tradicionais do Ocidente europeu e norte-americano. Ao fazê-lo, Israel emularia elementos de uma “tradição ocidental” de opressão e abuso político e social em nome do nacionalismo, essa ideia que camufla o fato de que a nação não passa de uma “identidade suprema e todo-poderosa que reprime com força o conjunto das representações coletivas da época contemporânea” (SAND, 2011, p. 53). Esta ideia se coaduna com o argumento de Elias e Scotson (2000, p. 212), para quem “a força da função vivificadora do sentimento de valor próprio se mostra na universalidade da tendência de elevar o valor do próprio grupo às custas do valor de outros grupos”. Israel passa aí a impor aos palestinos uma política segregacionista similar aquela sob a qual os próprios judeus padeceram em tantos momentos da história e cujo clímax, guardadas diferenças, foi o horror dos campos de morte nazistas. Horror pelo qual, aliás, os palestinos não têm “a mais remota porção de culpa” (CLEMESHA, 2005, p. 75). Para Said (2004, p. 70)

“nos anos posteriores a 1948, quando Israel se estabeleceu como um Estado judeu na Palestina, no que outrora fora uma população diversa, multirracial, de vários povos diferentes [...], houve, novamente, uma re-esquematização de raças e povos que, para aqueles que estudaram o fenômeno da Europa dos séculos XIX e XX, mais pareceu uma paródia das divisões tão assassinas de antes”.

A riqueza da cultura judaica estaria justamente no seu universalismo, capaz de produzir pensadores como Spinoza, Marx e o próprio Freud, que produziram conhecimento em grande medida livre dos particularismos identitários que encerram as tradições dentro de si mesmas e que ora cristalizam uma cultura judaica ocidental ideal dentro dos limites das fronteiras geográficas do Estado de Israel.
Cumpre dizer que árabes e judeus compartilham uma ancestralidade comum e participam de culturas análogas em muitos aspectos. Se são inimigos não é por força de seus próprios interesses, senão pelos das superpotências imperialistas sob cujos auspícios tanta atrocidade se fez exatamente a estes dois grupos. Resgatar a simpatia entre árabes e judeus a partir da leitura de Moisés e o Monoteísmo, de Freud, significa caminhar em direção à paz e à desconstrução dos discursos imperialista e nacionalista de que árabes e judeus são vítimas experimentadas.
O sionismo, atuando em nome de todos os judeus, povo em que há, inclusive, muitos que objetam contra a política israelense em relação aos palestinos, faz um esforço sistemático por obliterar a diversidade da cultura judaica em nome do elemento “ocidental” desta cultura, a saber, apenas um fragmento do todo. Há valor na permeabilidade das tradições, e no tocante à solução para os conflitos que se arrastam por décadas no Oriente Médio, faz-se eloquente a proposta de que do consentimento desse valor advenha a convivência pacífica entre judeus e palestinos num Estado binacional onde estes grupos aceitem que são partes constitutivas de suas histórias e identidades.
            Alguns passos neste sentido têm sido dados dentro do próprio Estado de Israel. Desde o final do século XX, a sociedade israelense[1] tem respondido ao agravamento da tensão entre Israel e Palestina com “uma necessidade quase desesperada de ressuscitar a discussão crítica e o levantamento de novas ideias, inclusive daquelas que destoam do consenso judaico consagrado – e talvez destas principalmente” (KIMMERLING, 2001, p. 1). Tais discussões e a ascensão social de grupos outrora marginais, como russos, etíopes e judeus do Levante, têm levado à decadência paulatina da elite israelense, caracterizada pela “pela origem étnica ocidental e pela auto-imagem que se empenha em identificar-se com os rótulos desta cultura” (KIMMERLING, 2001, p. 2).
            A elite tradicionalmente ashkenazita e laica que venceu a guerra de 1948, desalojou os árabes e absorveu imigrantes judeus, também criou uma categorização de diferentes níveis de cidadania no Estado de Israel. Com a outorga da nacionalidade israelense a judeus de diversas partes do mundo, estes judeus, agora cidadãos de um Estado judeu, viram-se presos numa conjuntura que faz confundir o fato de todos serem judeus com uma suposta igualdade etno-nacional entre os mesmos. Isso ocorreu quase paralelamente à remoção dos árabes do país, pelo que se desenvolveu, a partir de 1948, uma situação em que a nacionalidade abastece a ideia de igualdade étnica judaica. Ao mesmo tempo, a noção de uma etnia judaica municia a desigualdade entre judeus e palestinos. No entanto, sabemos que “a cidadania israelense, baseada em critérios absolutistas de afiliação e pertença, veio a existir somente com o estabelecimento de Israel como Estado” (HANDELMAN, 1994, p. 3). Antes disso, a pertença à comunidade judaica na Palestina não tinha o caráter estatal e obrigatório que ganhou a partir da Guerra de Independência. Para Handelman (1994, p. 3), “a relativa flexibilidade da pertença durante o período pré-Estado tinha algum efeito sobre a qualidade das relações entre judeus e palestinos antes do advento de Israel como Estado”.
            É compreensível que depois do Holocausto, o sentimento que pairava sobre os judeus europeus era de absoluta insegurança, e que neste sentido, o estabelecimento de um Estado judeu soberano e militarizado significou também a promessa de que a desgraça que os havia acometido nunca mais aconteceria. O problema seria que, impulsionado pelo antissemitismo europeu, o Estado de Israel teria sido fundado por meio de uma política de ocupação da Palestina a partir da negação do outro, a saber, o povo palestino. Aceitando que israelenses e palestinos estão na região para ficar, parece razoável pensar que a perpetuação da política de negação dos palestinos por Israel apenas trará maior ódio sobre si. Inversamente, seria ingênua a ideia de que os ataques palestinos a Israel têm origem apenas no tratamento que lhes é dispensado pelo Estado vizinho. A complexidade e a tensão da situação na região ocorrem a despeito da brevidade dos conflitos, que se aproximam dos quarenta e cinco anos: só um suspiro na extensa história desses dois povos, ao longo da qual a convivência pacífica e as ricas trocas culturais superam em muito quaisquer rusgas que tenham acontecido no decorrer do percurso.
Judeus e palestinos são, sob muitos aspectos históricos e culturais, colaterais, paralelos e até contrapostos um ao outro, mas é exatamente por isso que suas identidades são permeáveis entre si. Igualmente, o conflito entre judeus e árabes palestinos deve ser encarado como inserido no contexto do esforço pela manutenção do poderio imperialista no Oriente Médio, do qual urge a povos com heranças tão internacionalistas emancipar-se.



[1] A sociedade israelense, obviamente, não constitui um bloco homogêneo, e as ideologias políticas em Israel tampouco. O que se propõe aqui é que se tem visto aumentar as discussões políticas com este teor no Estado de Israel.

Referências Bibliográficas

CLEMESHA, Arlene. Uma Herança Árabe Internacionalista. In: ________(org.). Edward Said: Trabalho Intelectual e Crítica Social. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2005.
ELIAS, N; SCOTSON, J. Os Estabelecidos e os Outsiders. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
HANDELMAN, Don. O Fim da Hegemonia Ahusalita. Tradução de Saul Kircshbaum. São Paulo: s/e, 1994.
KIMMERLING, Baruch. Contradições entre Cidadania e Nacionalidade: Suas Consequências para Etnicidade e Desigualdade em Israel. International Journal of Politics, Culture and Society, Vol. 7, N. 3, 1994.
SAID, Edward W. Freud e os Não-Europeus. Tradução de Arlene Clemesha. São Paulo: Boitempo, 2004.
SAND, Shlomo. A Invenção do Povo Judeu. Tradução de Eveline Bouteiller. São Paulo: Benvirá, 2011. 

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